CONTO – A MULHER E O PEIXE – O DESCANSO DO HOMEM

hs-003

A MULHER E O PEIXE

O meu coração pirata
toma tudo pela frente
mas a alma advinha
o preço que cobram
da gente
e fica sozinha…

…Ah! O espelho me disse
você não mudou
sou amante do sucesso
nele eu mando
nunca peço
Eu compro o que
A infância
Sonhou
Nando e Aldir Blanc
Coração Pirata

Com certa freqüência passa pela minha cabeça um pensamento assustador. Eu deveria, gradativamente é claro, mudar para um outro esporte! Uma coisa mais leve. Caminhar por um parque cheio de meninas bonitas com tênis novos e roupas ajustadas. Ou uma esteira numa academia ao som de um rock ou músicas que só batem, batem: pan, pan, pan, pan.
Mas a realidade era o silêncio concreto, bonito, onipresente só ritmado pelo barulho do mar. Uma praia longa com um sol quente e claro se espalhando e dando brilho na areia cinza clara, criando sombras charmosas no verde escuro das águas que chegavam à praia em ondas pequenas.
Parte da realidade é que eu andava há dois dias. Sentia o cansaço como uma presença ao meu lado. Um leve, talvez micrométrico toque de dor na articulação coxofemoral direita, levava para minha cabeça (junto com a dorzinha) uma fímbria de preocupação. Será que um dia, com mais idade, vou precisar de uma prótese na cabeça do fêmur?
Ao mesmo tempo em que via umas rochas à distância, – e nelas manchas verdes de vegetação que significavam sombra –, eu lutava contra o pensamento que tinha topado um desafio longo demais. Longe de mais. Quem sabe. Mas já estava quase no meio e voltar, nunca. Enquanto eu punha minha cabeça, emoções e moral no alto, as rochas vinham vindo e pude ver que havia maravilha, o carinho e o bom da sombra. Não apertei o passo. Continuei no mesmo andar.
Próximo dos rochedos vi que a praia descia uns quatro metros mais ou menos. Um declive de areia solta. Ótima pra rolar ou correr enfiando os pés. Espadanar areia! Correndo alegre para o mar, um riozinho simpático de cor sépia escuro e pessoal até. Dava pelos joelhos. Depois pude ver o quanto estava precisando daquela parada, da sensação de leveza; a realidade que só uma sombra num dia quente pode oferecer a um mortal.
Sentei-me à sombra, num tronco caído. Respirei fundo e olhei com um imenso prazer o mar. O mar e a luz viva do sol fora do macio das sombras onde eu ganhara um espaço e respirava mais leve. Tirei os sapatos de caminhada! Beleza. Comecei a massagear os pés. Quando olhei de novo para o mar, há alguns metros à frente vi uma calcinha! Não era um biquíni. Era uma calcinha. Um pouco mais numa linha reta um soutien. Juntando esses dois pontos e tocando a linha para o mar, rastros de um pezinho. Junto à água as ondas apagaram os rastros!
Levantei e corri! Fui tirando a camiseta e caindo desajeitadamente à medida que tirava a calça. O choque com a água fria foi fantástico. Fui até onde deu procurando correr e então mergulhei. Água clara e logo a vi.
Linda… Linda! Uma verdadeira visão.
A água filtrando o sol, banhava uma mulher de pele muito branca, nua, dançando maravilhosamente ao som dos movimentos do mar. Braços abertos, mãos se movendo com suavidade e dando uma dinâmica aos dedos. Bonito o bailado dos dedos. As pernas abertas tinham movimentos mais amplos e suaves. Toda ela dançava e o sol criava regiões de claro e escuro no corpo bem feito. Uma magia! Indescritível. A boca semi aberta mostrava os incisivos superiores. Ela sorria! … Sorria o sorriso mais bonito que já vi. Tudo dançava. Ela era harmonia, era o mundo se movendo embaixo do sol e dentro do mar.
O que bailava num ritmo mais rápido, mais excitante, eram os seus cabelos! Meu Deus! Longos, ruivos e serpenteando, subindo, descendo, ocultando o rosto claro e mostrando-o com ímpetos!
Ela morria lindamente no mar.
Subi, tomei ar, desci de novo e me postei por trás dela passando o braço suave e firmemente por baixo do queixo da musa dançante do mar. Ela me fincou as unhas no braço. Pensei na possibilidade de morrermos os dois ali. Imagine! E comecei a nadar para a praia com ela. E chegamos!
E chegando, fiz tudo o que sabia para tirar de dentro dela, o pedaço de mar que a tinha engolido enquanto dançava ao sol filtrado de verde no mar. Depois a deixei descansando. Já eram 16 horas e entendi que teríamos que ficar por ali mesmo.
Dei uns giros mantendo sempre o olho onde a havia deixado. Encontrei roupas e uma mochila pequena tipo “ataque”. Ela tinha vindo da direção oposta a minha. Encontramos-nos no mar.
Quando voltava ela me acompanhou o tempo todo com um olhar vivo, denso, até que ficamos frente a frente. Estava sentada em frente do tronco, sobre minha camiseta, com o queixo apoiado nos dois joelhos e as mãos cruzadas segurando as pernas logo acima dos pés. E me olhava. Tinha os cabelos desgrenhados em parte sobre o rosto. Olhos de um marrom claro que enfeitavam uma expressão felina. Parecia uma leoa!
Um longo silêncio quebrado por mim.
– Oi! Voltou?
– Sim. Voltei. Como é o seu nome?
– Ivan. E o seu?
– Carinha… Você não notou, não sacou que eu estava me suicidando?
Fiquei completamente perdido.
– Bem, cheguei a pensar nisso, mas…
– Mas, porra nenhuma! Não deu pra entender que eu estava saindo, indo embora, tirando o time de campo? Droga!
Tentei brincar.
– Era muito cedo pra você ir e…
– Por que você não se mete com seus assuntos e não deixa aos outros suas opções! Abelhudo! Sabia que a primeira fase do suicídio é muito difícil… eu já a tinha passado e estava quase lá… estava tudo tão bonito. Que saco pô!… Meu nome é Márcia.
– Sabe… você me deixou confuso… Bem, veja só, eu poderia ter morrido com você no mar!
– O que seria muito bem feito! Te ensinaria a não se meter mais com a morte alheia!
Ela estava muito braba mesmo!
– Você, bem… me desculpa… que chato que a salvei!… mas… nunca passei por isso antes, sabia?… Não salvo gente todos os dias… achei que tinha que salvá-la, Márcia… veja só… salvei!… imagine… Nem cheguei a pensar numa outra coisa! É um instinto, entendeu? Uma coisa que dá na gente… salvar, pô… a gente vai lá e quando pode, blam… salva. Caramba!
Comecei a me preocupar. Estava há muitos e muitos quilômetros de qualquer gente! Só, com uma maluca com olhar de leoa e que tinha estado quase lá. E daqui para frente, sabe-se lá o que ia rolar?
Voltei a pensar que tinha que mudar de esporte…
Sentei-me no tronco ao lado dela. Ficamos olhando o mar por algum tempo.
– Você está nua ainda!
– E daí? Não gosta de mulheres nuas? Ou prefere só os “nus artísticos” nas fotos?
Ela estava ácida. – Não… tudo bem. Só para lembrá-la.
Levantou-se. Pegou a calcinha que eu tinha pendurado num galho, foi até o rio e a lavou bem. Voltou. Fez um gesto para vesti-la, mas mudou de idéia.
– Vou esperar secar. Tenho um short na mochila. Tem que ser bem lavada por causa da areia. Uma amiga minha deitou-se na praia e entrou areia. Teve uma vaginite danada!
– É bom se cuidar mesmo, viu. Há tanta coisa que pode fazer mal!
– E ela não estava se suicidando… estava transando com o namorado!
– Imagine só… que pena. Que pena a infecção é claro!
Saiu. Trouxe suas roupas e a mochila. Olhou em volta.
– Parece que vamos ter que ficar por aqui hoje!
– Tenho uma barraca. Vou montá-la. Me ajuda?
– Que organizadinho o garoto… Ótimo.
Abri a parte de trás da minha mochila e tirei uma sacola com a barraca.
– Vamos decidir uma coisa aqui e agora – disse ela com o olhar leonino incandescente com o por do sol. – Não vou dar pra você! Sem recompensas… Entendeu?
– Tudo bem – Não pedi nada mesmo, pensei – Sabia que nunca fiz sexo com uma mulher que quase esteve lá. Aquelas com as quais transei, estavam bem aqui.
– Imbecil… Metido. E piadista ainda! Bem, Já que não morri vamos ver se, pelo menos, dormimos bem esta noite. Que cansada que estou; cara! Isso de andar tanto e tentar morrer é muito cansativo.
Tive que rir.
– Eu, – repliquei – só estou cansado. Caminhada, banho de mar…
Ela era rápida, eficiente. Ajudou-me, pôs suas coisas numa certa ordem. Depois deu uma volta. Fiz uma fogueira pequena num buraco que cavei. Comemos um jantar liofilizado. Ficamos num longo silêncio. A noite caiu muito escura dando ao ambiente uma cor de magia. Ela se encolheu um pouco.
– Cara – ela disse, – Se você não me tivesse tirado onde será que eu estaria agora? – Ela pensava numa outra escuridão.
– Não sei. Quem sabe muito mais longe do que o céu. Muito mais!
Um tempo quietos e finalmente ela falou:
– Vamos dormir?
Abrimos o zíper da barraca, limpamos os pés da areia, entramos. Abri o meu saco de dormir para incluí-la e dormimos bem. À noite acordei. Ela se batia e falava angustiada. Para não ouvir algo que não queria dei um toque leve no seu braço e ela virou e ficou quieta. Ter estado “quase lá” não foi tão inócuo assim.
Acordamos. Ficamos surpresos de olhar um para a cara do outro; levantamos, rimos e entramos em um dia com muitas nuvens e pouco sol. Comemos algo, tomamos um suco concentrado e começamos a andar. Ela decidiu tocar na direção em que veio. Voltava. Andava razoavelmente bem. Era um pouco dispersiva; e se falava um assunto importante, parava para se explicar melhor. Tenho horror a pessoas que não conseguem falar e andar concomitantemente. Nossas paradas eram diretamente proporcionais à importância que ela dava ao assunto em pauta. Paramos demais! Mas, como estávamos juntos, decidi me adaptar àquele ser humano ímpar e extremamente interessante que caíra no meu caminho. Ela era inteligente e rápida de pensamento.
Numa parada ela me tocou levemente o braço.
– Vou te contar uma coisa. Promete não rir… pelo menos, muito?
– Claro. – Respondi.
– Há um momento horrível em que todo o nosso corpo luta para viver! Dói… dói… Uma coisa imensa e chocante rola dentro e fora da gente. Um terror, um grande ponto de interrogação. Gozado como o corpo não quer morrer! Tudo luta!
– Nossa! Eu imagino!
– Daí vai passando… passando… e abre-se um quase que mundo novo. Bem novo! Vamos passando por essa fase física e começando a ver algo com muito mais do que os olhos… Um imenso portal aparece não muito longe.
Ela ficou um bom tempo em silêncio. A leoa estava numa fase de ser humano e fiquei quieto.
– Sabe… um pouco no fim da fase física eu vi um peixe grande, bonito, um marrom escuro com manchas esverdeadas. Olhos grandes e lábios carnudos, também grandes! Ele me olhava, me entendia. Ele estava comigo! Comunicava comigo. Ele gostava de mim. Senti isso!
Mais uma pausa. Tomou fôlego, olhou para o longe e continuou.
– Cara, sei que é loucura… mas me apaixonei perdidamente por aquele peixe! Ele era tão querido…
Mantive a boca fechada, mas olhei furtivamente para o arredor… Eu estava ali, sozinho com aquela mulher de cabelos vermelhos e cabeça pinéu! Por uma fração de segundos temi pela minha integridade física. Ela continuou.
– Estávamos juntos e o entendi profundamente! Integrei-me a ele… Amor, amor mesmo; paixão. Adoraria que ele me comesse, entende?
– Que coisa! – Disse eu. – Que experiência!
– Subitamente, algo me puxou, me afastou e me tirou daquele mundo. Você. Os portais fecharam-se.
Na realidade eu pensava que, logo-logo, se eu não chegasse, o bicho iria comê-la mesmo, literalmente falando. Mas há momentos na vida em que a gente não pode, sob hipótese alguma, dizer o que está pensando. Com ela, vi que esses momentos eram freqüentes.
– Ainda não sei bem como, ou o que houve – continuou ela mais empolgada, – mas sei que minha vida mudou e muito. Sou uma outra mulher. Sou nova!
Olhou-me com os olhos intensos passando a mão lentamente no meu braço. Arrepiei-me, mas de puro medo.
– Creio que você me tirou de lá para um grande propósito! Vamos descobri-lo juntos. Você é um anjo. Um enviado. No duro mesmo! Um anjo, cara.
– Obrigado. Obrigado por ter me contado algo tão pessoal!
Eu, simplesmente não sabia bem o que pensar, mas decidi ouvi-la até o fim. A palavra “fim” me soou pressagiosa, pesada. É… Já me chamaram de tudo na vida… Mas de “enviado”.
– O que houve com o seu braço?
– Você me cravou as unhas – ou garras? – quando a peguei para tirá-la daquele mundo. – Evitei o verbo salvar.
Ela riu num tom cristalino.
– Também!… você se imiscuiu num momento fundamental da minha vida. A morte pensada, consciente, até alegre. Mas acho que é o Plano para mim!
Continuamos nosso caminho e ela, muitas vezes, discorreu sobre o destino, um forte e novo sentimento de missão. Também a beleza e o charme metafísico-erótico do peixe.
Era amor o que ela comunicava. Senti-me um pouco feio, meio nu sem escamas e levemente ridículo sem lindas guelras que abriam e fechavam. Era como se o modo com que um homem puxa o oxigênio do ar não fosse elegante. Ao contrario, meio “out”. Tudo bem. Somos o que somos. Quem nasceu para Homo sapiens não chega a peixe por conveniência.
A praia à nossa frente fazia uma elegante curva para à esquerda, como um arco. Estávamos num dos extremos dele. Ele terminava a uns quatro quilômetros numa ponta com pedras e vegetação. De onde estávamos podíamos ver logo depois dela, as primeiras casinhas de um povoado. Uma vista bonita.
– Cara – disse Márcia, – Eu cheguei ali e passei por aquela gente… nem olhei, nem dei bola para eles. Eram figurantes, acidentes de percurso.
– Vamos ficar lá esta noite. Na hora certa inclusive. Veja o sul… está ficando tudo preto. Mesmo sem ser bom em mar e tempo, dá para sentir que vai chover.
Andamos em silêncio o resto do caminho. Passamos pela ponta e a uns cem metros à direita, sobre um barranco de areia, um punhado de casebres. Chegamos.
Barcos esculpidos em troncos. Algumas baleeiras; pequenos em sua maioria. Manutenção em falta em quase todos. Cores bonitas, vivas num passado glorioso e agora esmaecidas. Todos eles parados, escorados e enfeitados de redes, latas, remos e recipientes diversos de plásticos. Como é feio o plástico.
Um caminho de uns cinqüenta metros cavado no barranco de areia fina, cinza escura levava a… bem, vamos chamá-la de vila. Cada casebre era uma coleção de madeiras diversas. Nos quintais, muita coisa jogada. Caminhamos devagar e logo vieram crianças. Pequenas, miudinhas, olhos surpresos, pesados e ausentes. Algumas meninas de uns 12 anos carregando nenês no colo. Todos olhavam. Homens e mulheres de idade nos mediam de janelas sem vidro.
Um espaço sugeria uma praça e no fundo desta um bar. Lá, homens e algumas mulheres estavam sentados na varanda, mesas ou encostados em qualquer metro de parede disponível. Muitos equilibravam com esmero um copo de cerveja na mão. Outros jogavam dominó. Todos nos olharam. Algo fora do dia a dia deles chegara num casal com mochilas.
Márcia brincou com as crianças, deu um oizinho para a turma encostada no bar. Sorrisos com ou sem dentes, tímidos ou marotos responderam. Ela continuou e passamos à direita do bar e por um caminho estreito chegamos a um casebre onde uma mulher sem os incisivos superiores, sorridente, nos cumprimentou alegremente da moldura de uma janela.
– Entrem – disse ela.
Entramos. Ao lado do casebre, numa garagem improvisada, sob uma lona de plástico preto estava um Gol vermelho.
– Esta é a Dona Fina – disse Márcia.
– Muito prazer.
Ela me cumprimentou sorrindo um sorriso infantil, demorado que me olhava atentamente.
– Seu carro ficou quietinho ali. Ninguém buliu nele! – Falou alegremente.
– Obrigada – respondeu Márcia.
Depois se virou para mim: – Parei aqui, deixei o carro, desci para a praia e andei para encontrar com você.
– E com o peixe – Falei sorrindo. – Principalmente com ele!
Um diálogo difícil com a Dona Fina. Josefina. Ela ria muito para cobrir sua insegurança. Logo saiu e foi para a casa da mãe que ficava próxima – tudo ali ficava próximo – e nos deixou em sua casa. Mas antes nos preveniu que ia cair uma “tromenta”.
Márcia tinha negociado com ela. Assumimos o ambiente, olhamos. Tudo estava ajeitado. Uma casa espartana. Um quarto pequeno e o resto da casa. Num canto um fogão à lenha daqueles com uma abertura grande na frente por onde se punha pedaços compridos de madeira e se ia empurrando-os a medida que queimassem. Num outro canto um fogão a gás. Tudo limpíssimo. Só o essencial. Uma panela, dois pratos, duas canecas, um bule, uma frigideira, um urinol, uma cama, dois quadros; um com Jesus e outro com Maria. Ambos expondo seus corações. Duas cadeiras e uma mesa pequena. Um banco de tábua e uma rede – ou parte dela – de pesca amontoada num canto.
No fim da tarde um escuro maior ainda caiu sobre o mundo, seguido de vento forte. Um pouco antes, todos que estavam na rua se espalharam rapidamente para suas casas. Uma tensão, um frenesi. Janelas e portas se fecharam. Um todo pesado lá fora. Vento sobre o barulho enfezado do mar. Folhas e areia dançando pelo espaço. Árvores se inclinando, gemendo, perdendo galhos que voavam ou ficavam travados nas cercas. Uma expectativa do forte ou perigoso. O medo seguia o vento.  Marcia não tirava os olhos bonitos e leoninos da janela. Parecia uma porta para uma outra dimensão. Um medo grande, misterioso que fazia a gente se encolher. Um medo que tomava corpo dentro de nós e nos fazia ver a morte galopando com o vento. Medo que punha em evidência o desconhecido e tirava tamanho da gente.
Mantive a janela aberta por um tempo. Fiz umas fotos do rebuliço lá fora. Márcia pediu para que eu a fechasse. Estava aterrorizada. Eu encantado. Depois, o medo fugiu e gostei da chuva e a tempestade! Mas, fechei a janela. Tiramos o estreito colchão da cama da Fina e o encostamos de lado na parede que separava o quarto da sala. Sentamo-nos juntos e ficamos de frente para a janela fechada.
Vieram o trovão e os raios. A vez deles! O vento aumentou. A luz azulada entrava por todas as frestas da casa… Víamos os poucos objetos, iluminados em diversos ângulos. O mais impressionante era o quadrado feito de luz fortíssima que passava pelas frestas e emoldurava a janela fechada. Marcia olhava fixamente para a janela. Dali para frente foi fantasmagoria, o susto, a sensação de pequenez e a ameaça de forças superiores. Levantei, fui à janela e abri-a levemente. Pus a câmera na “pose” apontei, apertei o disparador por uns instantes e fechei o diafragma. Fiz o procedimento algumas vezes. Márcia me chamou numa voz de desespero surdo. Fechei a janela e voltei. Ela abraçou-se em mim. Sentia seu corpo profundamente ligado ao meu e pensei os pensamentos de terror e medo dela. Ela temia que no “lado de lá” houvesse tempestades iguais ou maiores e via a sua “quase” passagem.
– Não – eu disse… – Tempestades estão todas por aqui. fora de nós e dentro de nós. Não se preocupe. Acalme-se.
Tudo ribombou por muito tempo. As luzes vieram muitas vezes e queriam nos alcançar. Até que no ponto onde caia uma chuva normal, dormimos sonhando com a chuva e com muita água. Acordamos tarde no dia seguinte. A luz emoldurava a janela. Abrimo-la e estava tudo como na vida do sol num dia. Só os sinais da crise do tempo ou uma explosão da falta de paciência dele. As pessoas passavam e comentavam. Arrumavam uma coisa ou outra. Olhei para Márcia e ela já estava normal com seus olhos iridescentes brilhando, para variar.
– Ivan…
– Sim, Márcia.
– Você acredita nos deuses?
– Márcia, eu acredito no homem e nas necessidades dele. O homem é o centro e parâmetro de todas as coisas. Dos deuses nada posso dizer de concreto. Pois nesse particular são muitas as coisas que ocultam o saber: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida.
Ela me olhou por um tempo com uma expressão divertida passeando num olhar vivo.
– Que bonito que falou! Mandou legal.
– Obrigado. Mas, – eu disse devagar – Infelizmente eles existem.
– Sério?
– Claro! E numa quantidade impressionante. Um dos gregos antigos disse que “todas as coisas estão cheias de deuses.”.
– Ivan, não é muito deus?
– É. Demais da conta. Sabe, nós os criamos!
– Tá maluco cara! E por quê?
– Insegurança… Insegurança. – Ela estava muito surpresa. – Temos perguntas irrespondíveis aparentemente. E sérias. Tarefas imensas à nossa frente, muito além da nossa capacidade. Assim os criamos para ajudar. Enchemos tudo com deuses inúteis que cobram um preço enorme só para existirem e encherem o saco.
– Nossa! – Estava aflita mesmo. – Ivan, e agora?
– Agora. Bem, no meu anteprojeto, eu começaria acabando com eles todos. São imprestáveis e não servem para a finalidade para qual os criamos. Depois, vamos encarar as grandes perguntas. Junto com quem pensa nelas com seriedade, é claro. Depois, e só depois, viriam as tarefas!
Tenho horror a palavra “dó”. Quem tem dó está sempre por cima e olha para alguem lá em baixo. Dó é a expressão de um egoísmo sofisticado com tons de autoridade intelectual. Mas, eu estava com dó da Marcia. Estava mesmo. Pequena, esbelta, bonita. Olhinhos assustados como os de uma criança frente à vida cheia de supresas. Quase “lá”. Vi muitas sombras nos seus olhos bonitos.
– Ivan, me diga. E nessa luta contra os deuses vai sobrar alguém ou coisa… viva?
– Não sei. Mas, sabe de uma coisa… Vale! Civilizações já desapareceram nela. Só que creio que desta vez vai dar certo!
– Ivan, cara… nós dois somos loucos. Você é mais experiente, pensa  e vê longe. Eu sou só doida, falou.
Ela ficou me olhando longamente o que fez voltar à mente o mudar de esportes. Depois me assustei um pouco com a minha brincadeira e procurei tranquilizá-la.
– Esqueça – ri alto – esqueça dos deuses e vamos pensar um pouco em nós e num bom café.
– Tudo bem… Vou dar uma volta – disse ela. – Vou ver se acho pão. É a nossa necessidade agora. E aqui, uma tarefa e tanto! – Ela riu um riso bonito e cristalino. – Um bom trabalho para o momento!
Ela saiu e fiquei fazendo um café com o mínimo de ingredientes e possibilidades. Bem, só tinha o café. Mas o emocionante foi acender o fogão à lenha. O fiz com toda a calma usando a madeira bem fina antes. O fogo saltava da mais fina para as subseqüentes mais grossas até que se instalou no fogão na sua forma estável. Quando ele estava aceso, considerei tudo como sendo uma boa obra feita com critério. O café foi um prêmio!
Ainda esperei um bom tempo até Márcia voltar com um pão passado. Mas foi um dos melhores cafés da manhã que tomei.A companhia dela ajudava muito. Estava mais quieta, ouvia com atenção e gostava do que eu dizia ou contava. Ela me estimulava a falar e puxava coisas com uma refinada – e consciente – arte de ouvir.
Estava misteriosa e eu preocupado.
Decidimos ficar dois dias. Saí, fotografei, conversei com algumas pessoas interessantes. Vi barcos vindo e indo com ou sem peixes. Márcia ia e vinha o dia inteiro. Não comia mais peixe. Estava animada, agitada mesmo. No começo do segundo dia, por coincidência, num ponto onde ela não podia me ver, eu a ouvi e fiquei estarrecido.Tinha demorado muito!
Um grupo pequeno da vila, formado de algumas mulheres jovens e uns garotões de olhos arregalados não se sabe bem se pelas “verdades” dela ou por ela.
Ela dizia (ou pregava…) coisas assim:
– Eu estive muito próximo do outro lado. Estive lá. Voltei por mãos de um amigo que foi destinado a me tirar do mar após eu ter uma grande revelação mais para lá das portas da morte. Estive lá despida de tudo o que era humano e desnecessário…
– Certo. Na realidade ela estava linda e pelada mesmo – Pensei. Ela continuou.
– Esta revelação me foi dada por um ser maravilhoso em forma de peixe. Eu o vi. Falamos. Comunicamos intimamente. Em poucos segundos, anos de comunicação aconteceram. Um ser aquático que todos vocês amam, gostam e dependem.
– Ele é mais do que um peixe… ele é o começo da vida como a vida nasce na barriga da mulher em meio do líquido. Estivemos no mar e do mar vem a vida.
Não tinha sido bem isso que ela me contou.Mas, devemos entender que todo o bom pregador tem que dar um jeitinho de contar do modo mais espiritual, bonito, ajeitado até as sacanagens que faz ou pensa. O bom pregador tem que saber contar histórias. Ela estava começando bem.
– Ele, o peixe, nadando em volta de mim, me disse que todos nós somos muito bons! Nossa alma está ligada ao bem do mundo e ao todo. Caminhamos em direção ao bem e o mal é apenas uma parte do caminho e a ignorância é que o engendra.
A platéia não estava entendendo bolufas nenhuma. Mas os rapazes ouviam e observavam os detalhes… Dela! As mulheres riam alegres! Todos gostavam.
– E eu fui escolhida para diminuir as trevas da ignorância de vocês todos, e fazendo isso, crescer dentro da luz que a natureza tem para todos nós.
Um gelo passou pela minha coluna!
– Todos nós podemos! Todos nós temos as condições de crescer na luz do mundo que vem do mar e do peixe. Todos podem mudar nosso dia a dia para ficar melhor… tudo que temos que fazer é aprender mais e nos deixar levar pela luz que começa dentro de cada um de nós.
– Quero passar para vocês o que aprendi… e isso devagar, andando juntos e espantando para longe a ignorância da religião coercitiva.
Tinha certeza que ninguém entendeu o “coercitivo”.
Falou muito mais, mas me esqueci. Parecia-me uma forma de panteísmo pessoal onde o peixe tinha um papel preponderante e a pessoa dela era a mensagem uma vez que ela tinha vindo da morte… Nuazinha. Nisso tinha falado a verdade. Impressionante. Não agüentei mais e, sorrindo, saí do meu esconderijo, caminhei e toquei de leve no braço dela. Ela parou num átimo. Sorriu para mim!
– Veja como estão felizes!… E para os ouvintes: – Tudo bem pessoal, depois a gente se vê!
Puxei-a devagar para um canto, próximo do mar. Sentamos. Falei com muita calma estudando a minha atitude e o modo de colocar os pensamentos.
– Meu bem. Estou estarrecido. Não conhecia seus dons de líder de pessoas! Bonito discurso. Você vai longe.
– Vou sim. Com certeza, Ivan… eles precisam da minha luz. Descobri minha missão na vida e você me ajudou! Daqui vai irradiar a luz para muitos lugares, e, quem sabe, para o mundo!
Olhei-a longamente com uma sensação de pena. Mas depois vi que pena não era a melhor palavra. Quem sabe se, misericórdia! Ali estava uma coisa além do entendimento. Seus olhos marrons claros me olhavam com profundidade, como que implorando algo que eu não sabia o que era. Ela começou a falar nervosamente. Fiz um tamponamento (técnica usada em odontopediatria, que consiste em fechar a boca da criança quando ela fica histérica) e falei muito firme, mas com carinho:
– Espere. Me deixe falar agora. Logo vou embora e quero explicar o que estou pensando. Fique quieta. – Ela ficou.
– Olha. Você falou muita coisa da sua cabeça que faz um sentido emocional para você e eles não entenderam nada. Absolutamente nada. Mas, Márcia, à medida que você continuar falando, vai elaborar mais e mais e montar uma teologia, uma história que vai ser muito forte, aparentemente consistente e acreditada por você mesma! Só você vai crer em você. Só. Mas eles – apontei para a vila – vão ficar influenciados pela sua cabeça e fazer algumas coisas que imaginarem que você quer. Ou coisas que pensarão que entenderam do que você ensinou. Só que tudo, Márcia, vai sair do seu controle muito logo. Eles vão depender de você e procurá-la por qualquer detalhe relativo a vida pessoa ou crise de cada um. Vai ser um peso imenso nas suas costas e vida. E você vai achar na sua teologia, uma coisa qualquer para dar a eles. Para justificar os achaques, problemas, dúvidas e prometer coisas melhores para o futuro. Você vai criar uma coisa feia, monstruosa e sem controle. Um dia vão surgir os heróis e até sangue para assinar e validar a causa.
Ela me olhava com olhos intensos. Continuei.
– Veja bem. Vamos sair daqui com o seu carro. Vamos para a casa de seus pais, ou seja, lá de quem for. Vamos ver se te ajudamos a por seus pensamentos em ordem. Eu quero ajudá-la, sabia?
– Que decepção… que triste, – falou Márcia dando um ar de caimento ao seu rosto e olhar. – Eu nasci para vir aqui e ajudar esse pessoal a caminhar no peixe para a luz! Que triste que um cara como você não possa ou não queira entender!
– Sabe, – disse eu, – não acho que você tem uma luz para mostrar. Mesmo que tivesse Márcia, eles não querem luz, querem, no máximo, alguém que pense por eles e assuma responsabilidade pelas vidas deles e por tudo que vão fazer.
Ela meneava negativamente a cabeça e me olhava com uma pena que dava dó.
– Fique aqui comigo e vamos, pela primeira vez na sua vida, fazer alguma coisa boa que ajude! – Ela chorava… – É a missão da minha vida, cara!
– Não é a minha – respondi e comecei a caminhar na direção da casa da Dona Fina para apanhar minha mochila. Ela me acompanhava um pouco mais atrás com um bico enorme. Acho que ia começar com um pouco de chantagem emocional.
Chegamos. Na porta havia um cara jovem, muito forte, queimado do sol com um olhar que fazia com que a gente se sentisse mal. No lábio inferior uma lesão. Pareceu-me um carcinoma. Ao lado, na janela, sempre com o sorriso infantil, Dona Fina sorria, sorria.
Cumprimentei-o, pedi licença, entrei e peguei a mochila. Naquele momento ouvi o que pareceu ser um choque entre titãs.
O moço falou com uma voz alta, mais ou menos estudada e entrecortada com emoções que ele tinha dificuldades em manter sob um relativo controle.
– Moça, me escute! A senhora está fazendo o que está pelo poder de Deus ou do Inimigo! – Me responda!
Ela foi pega de surpresa, – pensei. Uma pausa. – Adivinhei os olhos dela fulminando e ouvi:
– Estou fazendo o que acho que devo para ajudar, para participar… e você quem é? Qual é a sua, cara? Você é o dono da vida dessas pessoas?
Fiz menção em me levantar, mas parei. Continuei ouvindo. Dona Fina olhava pela janela, voltava-se para mim e ria sempre.
– Eu sou um servo do Senhor – disse o moço um pouco mais alto. O bate boca vinha à galope. Algumas pessoas pararam por perto para curtir o confronto. Uns sérios, outros riam, todos torciam. Dona Fina continuava rindo dentro do seu mundo.
– Ah é! Então fale com ele. Que bom! Como estou fora dessa e dele, faça o que você acha que deve e eu vou fazer o que sinto que posso. Ouve quem quer. As pessoas são livres! Só não me encha o saco, sacou cara!
– A senhora é uma serva do Inimigo! Não vou deixar que desencaminhe as almas nossas aqui! Não vou não!
– Se você precisa ser servo de alguma coisa, seja! Mas não manda nas pessoas! Sou livre e vou fazer o que acho que devo.
– Quem peca é escravo do pecado – disse o moço cuidando para dizer algo que tinha memorizado.
– Pare com isso, cara! Que saco! Alguém está fazendo a sua cabeça, não viu ainda? Agora desguie, caia o fora. Já me encheu o suficiente por hoje!
Um zum zum levemente mais alto comunicou que estava na hora de eu sair. Até o sorriso da Dona Fina tinha mudado para o susto. Medo.
Saí e vi algo lindo! Os dois se encarando com uns vinte centímetros de espaço entre os rostos tomados de êxtase teológico. Cada um ao seu modo! O moço tenso, músculos fortes contraídos e com um ódio fundo no olhar que dava sensação de desconforto. Ela com as pernas levemente abertas, mãos na cintura e os olhos de leoa brilhando o brilho da luta. A mesma fúria teológico-salvadora havia se apossado dos dois! À volta, algumas ovelhas esperavam para ver quem iria ficar com elas. Genial e perigoso.
– Garotão, com licença! Vou conversar um pouco com esta moça Peguei-a pelo braço e puxei-a para dentro da casa. O rapaz ficou um pouco mais e saiu bufando com passos pesados de raiva.
– É, a concorrência… a concorrência. – Disse eu.
Ela sentou no chão com as pernas cruzadas. Dona Fina andou de um lado para o outro meio atarantada e saiu. Sentei também.
– Você vai embora mesmo? – Perguntou Márcia com uma voz fina, cansada.
– Vou.
– Me faz um favor?
– Faço se possível.
– Vá com o meu carro. Eu estava morando com uma amiga. te dou o endereço. Dê o carro a ela.
– Não.
– O que houve? Uma parte da fúria voltou ao rosto dela. – Cara, você tem uma característica feminina na sua personalidade! Fica histérico de uma hora para a outra!
– Ultimamente to ficando mesmo e não é para menos! Escute. Todo o dia ligue o carro por uns quinze minutos para não perder a bateria. E saia logo que vir que precisa cair o fora! Entendeu? Não demore! Sabe o que é uma peixeira?
– Não, não sei. O que é? Ela estava irritada e com medo.
– Uma faca feita de aço de serra. Corta muito. Nessas bandas é o instrumento de escolha para resolver pendengas tipo adultério, opiniões divergentes, brigas no bar, cachaçadas, crises filosóficas-teológicas e posse de fiéis, etc. Você humilhou aquele rapaz! Ele é um cara violento e não está acostumado a perder!
– Por que você não vai…
– Ah! Espere um pouco. – Saí e chamei algumas pessoas que ainda estavam lá fora. Vieram meio desconfiados. Duas mulheres, dois meninos e três meninas. Todos muito magros, feios e mal tratados.
– Fiquem ali no lado da moça – eu disse. – Isso mesmo! Podem abraçá-la… Legal, assim mesmo. Crianças na frente. Façam uma cara de inteligente… Depois podem voltar ao normal. Ótimo, lá vai…!
Márcia abraçou as duas mulheres e sorriu para a câmara na minha mão.
– Pronto! Muito bom.
Os modelos saíram alegres, animados após o click.
– Agora estou indo. Passe o telefone da sua amiga. Vou procurá-la e mostrar a sua foto. Mostrar que você estava viva quando nos despedimos. Viva e com alguns dos seus futuros discípulos.
Deu-me um número. Estava muito quieta. Comecei a sair e ela veio logo ao meu lado com uma expressão de angústia, de falta. Andamos em silêncio até a rampa que descia para a praia. Ali ela parou no lado direito do barranco. Dei-lhe um grande abraço.
– Cara, eu tenho que ficar. Ele mandou que eu fique… e eu vou obedecer.
– Ele. Ele quem?
– O peixe…
– Ah! O peixe. Bem se ele mandou…
– Vem me ver um dia desses?
Sorri. Muito assustado por dentro. Melhor, aterrorizado e sem saber o que fazer, fiz o obvio.
– Venho. Se você ainda estiver por aqui. Te cuida bem, gata, tá!
– Tudo bem… vou!
– Tchau. Boa sorte!
– Obrigada. Boa caminhada.
Comecei a descer pela areia solta do caminho da vila para a praia. Gosto desses caminhos de areia solta! Escorrega-se. Faz-se um barulhinho agradável de areia escapando por debaixo dos pés. Um rangidinho. É como brincar!
Quando começou a areia firme, olhei para trás e lá estava a minha amiga sobre o barranco. Pus as mãos em volta da boca e gritei para ela no meio de uma brisa agradável.
– Mais uma coisinha!
– Diga gritou ela também fazendo um megafone com as mãos.
– Você é muito bonita!
– Obrigada! Rindo, fez um trejeito de modelo profissional. – Vai abandonar uma mulher bonita à sua própria sorte?
– Não… como entendi, estou deixando uma guerreira no começo do caminho escolhido por ela! É diferente!
Ela riu alto e cristalino.
– Você não perde uma! Se cuide cara. Te gosto.
– Idem pra você! Tchau!
– Tchau amore!
Continuei mais um pouco e quando me virei de novo ela não estava mais.
Maravilha das coisas boas da vida. Quilômetros de praia pela frente. Voltei de novo ao meu ritmo. Caminho melhor quando ando numa velocidade de uns seis quilômetros por hora mais ou menos. Eram umas dez horas da manhã e o céu estava bom, poucas nuvens e uma brisa legal corriam com  charme.
O tchau de Márcia não me saia da cabeça. Ela era uma mulher de uma personalidade muito forte! Forte, além do bom senso. Com certeza nunca iria se relacionar com seus pares. Não admitia uma pessoa ao lado dela. Tinha que comandar sempre e o ser humano ao seu lado precisaria se amoldar para o que ela decidisse que era bom ou necessário.
Ia ficar muito à vontade no meio de pessoas simples e intelectualmente inferiores a ela! Estava criando o seu mundo e o povoando de gente que precisava dela; que a obedecesse! Não sei se ela sabia que há um preço muito alto na coisa. Nos velhos tempos se dizia que “a revolução consome os seus líderes.”.
Interessante que ela principiou a criar uma liderança tipo “espiritual” no meio daquela vilazinha. Foi a proximidade da morte, o medo do desconhecido que “forjou” a doutrina.
De certo modo óbvia a postura dela. Quem não consegue andar com seus pares, cria um palco onde põe os que dependem dele (por opção ou não) e exerce o seu comando. Cria um estado semelhante a dependência… Uma interdependência. O hospedeiro precisa da parasita e o parasita precisa do hospedeiro. Acho que este é o perfil de uma quantidade enorme de profissionais e líderes dos mais diversos grupos religiosos.
E eu salvei realmente uma mulher que ficou numa pequena vila para disseminar a sua “luz” e salvar, de preferência, o mundo!  Caramba! Faço cada uma!
E por aí ia o meu pensamento enquanto andava.
O mais fascinante, o engraçado é que ela ia criando a religião à medida que ia caminhando pelo dia e conversando com as pessoas!
Comecei a rir tanto que perdi um pouco o passo. Incrível! Mas, depois, literalmente rolei de tanto rir. Fiquei de joelhos na areia e ri até chorar. Imaginava, num belo dia do futuro, um teórico qualquer tentando entender o pensamento de uma mulher meio maluca que às portas da morte se apaixonou por um peixe com lábios sensuais, foi salva por um caminhante e depois ficou num lugar minúsculo para pregar sua fé a um bando de pessoas que não a entenderam nem a pau! Que divertido.
Veio, também, a imagem do rosto duro, congestionado e banhado de furor místico-religioso do moço da aldeia. Um frio passou pela alma. Espero que ela tenha o bom senso de sair antes que a guerra pelos fiéis faça a primeira vítima – ela. Mas, fazer o que? Tirá-la na marra? Impossível.
Mas pelo menos salvei alguém! E chega.
Aquela dorzinha muito pequena na articulação coxofemoral desencadeou, de novo, a visão de uma prótese na cabeça do fêmur. .
Márcia voltou de novo a minha mente. Houve uma coisa boa, um começo de relação. Mas não era amizade ou atração. No máximo foi a energia tremelicante que surge entre antípodas! Eu a achava maluca e ela me considerava um quadrado total. E olha que não sou. Bem, quem sabe se mais ou menos.
O vazio que vi sobre o barranco, no lugar onde ela estava, quando me virei provocou um mau augúrio! Uma sensação de desastre eminente.
À medida que andava, outros assuntos desfilaram pelos meu pensamento. Márcia e a vila foram- se indo, indo e sumindo no tempo.
Mas a vida é uma aventura. Uma grande aventura. Ela é misteriosa também. Muito misteriosa. É antiga. Vem de além da noite dos tempos. Quando chegamos aqui ela já é.
Demora a entendermos que ela é uma aventura, para acharmos o nosso lugar nela. A nossa aventura dentro da aventura.
A vida é única e grandemente dinâmica. Não ensaiamos, não treinamos; não temos um roteiro. Simplesmente vivemos uma primeira vez. Acertamos, erramos e um dia saímos. Ela é perigosa também.
Viver, ler, caminhar, trabalhar, escrever… Olhar as coisas, morrer, sair com amigos, são parte da aventura. Mas há mais. Nela, descobrimos o bem e o mal e decidimos por um ou outro.
Ao fim, contam os relacionamentos que conquistamos e a sabedoria em mantê-los. É uma decisão, um trabalho conservá-los. Também conta a marca que vamos deixar na história importantíssima e imensa além dos nossos limites. História da qual só entendemos uma faixa espantosamente limitada.
A única certeza é que vamos deixar o caminho um dia e que há uma incerteza monolítica à frente: se ele continua. Por isso o nosso descanso é a aventura, as rochas, as quedas, o suor, os amigos, o continuar e as paisagens soberbas; por isso buscamos Deus e amigos, o que na aventura da vida é a única busca nobre à nossa disposição.
O ambiente estava mágico, bonito, eterno. No dia seguinte cheguei a Cananéia. Passeei um pouco. Apreciei a cidade. Depois me sentei num barzinho na praça e pedi uma cerveja. Tomei um gole em saúde da Márcia. Queria vê-la um dia. Esperei um bom tempo. Chegou a hora e entrei no ônibus para a volta.
Instalei-me num banco confortável, à janela. Ao meu lado veio um senhor magro e pelo jeito quieto. Ótimo. Junto com a sensação do conforto, quando o ônibus começou a se mover, surgiu de novo o pensamento, que gradativamente eu tinha que mudar de esporte!
Uma academia, esteira, música, o social, papinhos e comemorações. Lindas meninas que (olha só o prosaico!) se apaixonem por homens mesmo!
Com certeza vou ter que mudar de esporte!

Mario Nitsche

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